terça-feira, 21 de julho de 2009

"O APAGAMENTO DA REALIDADE E A FOTOGRAFIA COMO A ARTE DA DESAPARIÇÃO


“A câmera é um modo fluido de
encontrar essa outra realidade."

Jerry N. Uelsmann


Muitos foram os autores que discutiram a problemática do simulacro a partir de um questionamento do que consideramos efetivamente como realidade. Dentre as muitas questões, uma é a que levantava dúvidas quanto ao status da fotografia enquanto instrumento de registro documental do mundo. A partir do reconhecimento de uma nova, ampla e complexa dimensão epistemológica, alguns de seus conceitos são revistos, resultando numa negação de sua ilusão mimética e sua consequente projeção a uma nova condição de elemento indutor do despertar de possíveis “ficções da realidade”.

Desde cerca de cem anos após sua descoberta, a partir de 1929, estudos ligados à crítica de fontes, desenvolvidos por diferentes correntes da teoria da história embasadas na linha da escola dos Annales
[1] e nos ensinamentos de Marc Bloch e Lucien Febvre, ao avaliar o alcance e potencialidade da fotografia enquanto documento iconográfico (uma das fontes mais preciosas para o conhecimento do passado), já dava conta de que tal forma de registro guardava em si apenas indícios, uma face externa da história, fornecendo um conhecimento fundamentado apenas em aparências[2]. Era o despertar para a compreensão da fotografia, não como uma mera soma de signos, mas como um novo órgão da cultura humana que tornava possível, não um número finito de entendimentos, mas um tipo geral de conduta que abria um vasto horizonte de investigações. Um registro suficientemente crítico para nele descobrirmos, na sua constituição mesma, os indícios de outra configuração ideal. Revelava-se a partir de seu papel cultural, um determinado caráter ambíguo enquanto documento de registro do real, dado o poder de informação ou - segundo um determinado pensamento positivista - de desinformação, por sua capacidade de emocionar e transformar, de denunciar e manipular. A imagem fotográfica redefinia assim, sua dimensão expressiva e suas amplas possibilidades interpretativas, não mais apenas como meio de apresentação, mas também de representação das inumeráveis atividades humanas. Mesmo que por um instante, durante a gravação da imagem, houvesse uma conexão com o fato real, a chamada evidência fotográfica não poderia jamais deixar de ser questionada pelo reconhecimento de que sua verdade era fruto de uma construção técnica, estética, cultural e ideológica.

A chamada evidência documental fotográfica para muitos é considerada o mais ardiloso estratagema sobre o qual, a partir de um pretenso estatuto de reprodução verdadeira dos fatos, se estribam processos de afirmação de realidades, tendo seu uso em estudos etnográficos, por exemplo, servido nos estudos mais antigos e, em alguns casos ainda hoje, como instrumento de dominação. James Clifford lembra que a pesquisa etnográfica é um processo interpretativo muito mais complexo que o simples ato de documentar ou coletar dados e informações. O etnógrafo impõe à realidade sua narrativa, já que tal realidade não pré-existe como algo que simplesmente aguarda o momento de ser descoberto. Metáforas e figurações contidas na narrativa afetam diretamente os modos como um fenômeno cultural é registrado, desde as primeiras observações coletadas à conclusão da pesquisa, em função do poder que tais configurações têm de construir um sentido determinante no ato de sua leitura. Não se trata de relações objetivamente dadas que têm a mesma aparência a partir de cada ângulo de visão, mas sim interpretações profundamente perspectivas, modeladas pelo posicionamento histórico, lingüístico e político das diferentes espécies de agentes
[3]. Para alguns pensadores pósmodernistas, a noção de uma divisão entre gêneros de escrita ou de coleta de dados fotográficos, seja como um estudo etnográfico, um registro de viagem, um ensaio jornalístico ou mesmo de uma ficção, são falsas. Sua categorização na melhor das hipóteses pode representar apenas uma necessidade de distinção de estilo, mas por outro lado, podem se constituir em discursos que encobrem estratégias de manutenção de dominação e afirmação de autoridade. Em ambos os casos, tais divisões são entendidas hoje como mitos, não havendo sentido algum em sustentá-las. Por esse motivo, etnógrafos contemporâneos, mixam estilos e gêneros tanto na escrita como na coleta e utilização de dados fotográficos, confundindo autobiografia, biografia, etnografia e até mesmo ficção e não-ficção em suas pesquisas[4].

Mas talvez a mais emblemática cisão de seus princípios miméticos seja a que trata, no campo da história, do registro de seu agente: o homem. São inúmeras as questões que permeiam a impossibilidade do retrato fotográfico se constituir num documento fidedigno de registro da pessoa fotografada. Ao
analisar a relação da câmara fotográfica com o rosto humano, Baudrillard faz do retrato um ato de desfiguração e despojamento do caráter do modelo.

The enigma of Isador Ducasse, 1920. Man Ray.

Confrontada com a encenação que o indivíduo fotografado faz de si, a objetiva não consegue idealizá-lo ou transfigurá-lo como imagem[5]. Barthes, em seu texto A câmara clara, localiza no retrato fotográfico o ponto de encontro e de confronto entre quatro “personagens”: aquele que o retratado acredita ser; aquele que desejaria que os outros vissem nele; aquele que o fotógrafo acredita que ele seja; aquele de que o operador se serve para exibir sua arte. São questões que, mais do que apontar para alguma limitação de natureza técnica específica, tratam propriamente de uma diluição do conceito de identidade, ao qual a fotografia pretensamente deve servir. Vivemos hoje a ditadura de padrões normalizadores de conduta, a luta da adaptação mimética como única forma de autopreservação - se é que resta ainda algum eu a ser preservado. Certamente em função de tal situação, Stuart Hall afirme ser mais apropriado refletirmos sobre tais questões nos dias de hoje, a partir da superação do entendimento de identidade, como algo definitivo, pela noção identificação, como um estado cambiante, em permanente processo de transformação[6].

A singularidade do mundo que habitamos passa por profundas reformulações filosóficas, culturais, éticas, estéticas, políticas, sociais e econômicas que se traduzem em discursos, não só dessas disciplinas, mas de inúmeras outras, em termos como lugar, não-lugar, entre-lugar, virtualidade, (des)territorialização, dentre tantos outros. Pela impossibilidade de captura da essência dessa realidade que se desmaterializa, a fotografia converte-se ao mesmo tempo em documento e agente dessa profunda mudança que se opera numa sociedade paradoxalmente cada vez mais pautada pelo código visual, seja na consciência da identidade do indivíduo, seja em seu entendimento acerca do mundo que o cerca.

Os poderes da fotografia, de fato, têm desplatonizado nossa compreensão da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir nossa experiência à luz da distinção entre imagens e coisas, entre cópias e originais
[7]. Mais do que afirmar seus limites, torna-se imperativo compreender a dimensão fotográfica a partir de uma arqueologia da imagem, capaz de alcançar, menos pela caça ao alvo da caixa preta de Vilem Flusser e mais pela afetividade da câmera lúcida de Roland Barthes[8], as camadas sensíveis que revestem toda forma de experiência humana.


Alexandre Sequeira

[1] A chamada Escola dos Annales constitui-se num movimento historiográfico. Recebeu essa designação por ter surgido em torno do periódico académico francês Revue des Annales, tendo destacado-se por incorporar métodos das Ciências Sociais à História. Geografia, cultura material e o que posteriormente os Annalistas chamariam de mentalidades ou a psicologia da época, passariam também a ser incorporadas como áreas de estudos afins.
[2] In: KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia,SP: Ateliê Editorial, 2007, p.29.
[3] APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia cultural global. In: FEATHERSTONE, Mike (Org.). Cultura global /3aEd. Petrópolis: Vozes, 1999.p.312.
[4] CLIFFORD, James. On the Edges of Anthropology. Chicago: Chicago University Print, 2003. Apud: EDLES, Laura Desfor. Cultural sociology in practice.21th Century Sociology collection. London: John Wiley, 1991.
[5] FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais. Uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p 75.
[6] In: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 39.
[7] In: SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.196.
[8] Pensamento formulado por Paulo Herkenhoff no Catálogo do 26° Arte Pará. Belém: Fund. Rômulo Maiorana, 2007. p.72.

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